Como se faz um projeto sem projeto sem saber como se faz um projeto
A Feira Plana é legal! Ela nunca foi um projeto, ela nunca soube o que seria, ela aprendeu a ser sendo. A Plana 4 foi agorinha em janeiro e eu rompi com ela. Foi a edição mais bonita e mais dolorosa, contudo, uma transição importante. Assim, esse texto é um esclarecimento e um aprendizado dividido em cinco tópicos de dores, útil para todos os questionamentos e todas as fogueiras acesas disponíveis à queimar os nossos sonhos.
Chorar — Um trajeto bem longo esse, o de fazer um evento independente e cheio de ideais. São uns ideais intuitivos mesmo, acho que quero assim, acho melhor desse jeito, não gosto daquilo ali então vamos fazer assim, derruba isso pra levantar aquilo, vamos fazer ficar bonito, vamos fazer coisas difíceis, as pessoas vão entender, as pessoas vão ficar felizes, as pessoas vão ficar felizes, as pessoas vão ficar felizes, as pessoas vão ficar felizes. São 7 meses de produção, no mínimo, diariamente, pensando sobre como reviver de novo poucos dias de um jeito melhor e mais coerente do que já foi. O desenho parece perfeito mas só passou um mês, os outros 6 são para resolver como resolver. E aí que tudo dá errado.
- Todo os valores de fornecedores que você já estava acostumado a trabalhar do ano anterior dobram de preço, inflação?
- As passagens em janeiro custam três vezes mais, é alta temporada. Como não pensar nisso? Desculpa, dia 25 de dezembro você estava trabalhando e chegou atrasada na ceia e você só sabe mais ou menos o preço de uma passagem de Cometa pra Belo Horizonte.
- Seu convidado de honra decide fazer outra coisa e não vir, então você começa a se sentir culpado, achando que dentre todas as gentilezas, alguma não foi gentil o suficiente para convencê-lo.
- Você insiste que participar da NY Art Book Fair todo ano é importante para manter a produção das publicações de seu país fascinando outros continentes, mas o dólar estava 4,4 e a sua fatura do cartão de crédito chega em outubro: 13 mil reais, e você não tem ideia do que aconteceu durante esses dias, do que sonhou comprar e nem do que é IOF. Mãe me ajuda?
- No quinto mês há uma lista interminável de problemas sem solução e você trabalha 8h por dia no jornal, faz plantão e cuida da casa.
- Uau! Uma oficina tipográfica! Que baita presente, assim, que bondade! Vamos usar felizes, muitos planos pra próxima residência. Mas, puxa. Resolveu que não vai dar mais? Entendi.
- Falta só um mês e você passou os outros todos entendendo como faturar gastos pro futuro abstrato, como pedir emprestado um pedaço da Feira pros amigos, como lidar com um novo e gigantesco patrocinador (uma promessa de melhorias e justiça), tendo idéias, envolvendo as pessoas, calculando íntimos desejos de perfeição para conseguir resolver tudo num espirro. Pra que contrato? “Eu sou assim, eu confio nas pessoas e resolvo tudo com aperto de mão e lealdade”.
Vomitar — Chuva de pedras não te deixa mais nervosa, “por isso já passamos e sobrevivemos”. A ansiedade envolvente das semanas que antecedem o grande dia do seu projeto atingem sua gastrite, sua enxaqueca, um Parkinson imaginário, as doenças que você nem sabia que tinha e quando olha em volta, está todo mundo doente também. Um com febre, outro com gripe, outro intoxicado. Picada de aranha, queijo estragado, catuaba demais, Lexotan de menos.
- Vamos usar um tipo de tenda nova esse ano? Uau, isso que é tenda! Olha esse pé direito, essa transparência, esse filtro contra raios UV. Oi? Quanto? Vinte? Mil? Eles merecem. MIS, ajuda a gente? Sim, o MIS ajuda a gente. Ufa.
- “Você não vem mais ministrar a sua oficina? O que? Não é possível. Uma facada? Isso não pode ter acontecido. Entendo, é realmente um problema muito sério. Tenho certeza que os seus alunos entenderão. Vocês entenderão, né?” Não.
- “Portanto, você, que viria junto com você que não virá mais, não pode mais vir também. Não pode mesmo, era um acompanhante. É que fica difícil assim, fazer as coisas só pela amizade, a grana está curta. Não precisa falar dessa maneira comigo, você está sendo um pouco injusto, você sempre foi muito bem-vindo, não entendo porque esses posts agressivos de ódio contra mim, pare de me difamar na página do evento, ah você é punk? Mas o ano passado você veio, e sabe quem pagou a sua passagem? A Adidas”.
- A Residência foi um respiro maravilhoso durante a fase vômito. Imaginava 4 dedicados projetos de zines. Que viraram livros. De 100 páginas. Em papel especial. Ainda sim, deixa ser, por favor. 30 mil cada um? Não dá, vamos cancelar tudo agora? Depois de um mês morando no hostel e sendo delinquente junto a eles? Tô apaixonada. Ipsis, me ajuda? Aline me ajuda? Ok, 15 mil cada um, vamos dar um jeito. Os residentes foram as pessoas mais dedicadas em anos que vivi. Daremos um jeito. Ainda vamos dar um jeito.
Desmaiar — Uma semana Plana! A melhor equipe já formada, parece que todos os problemas foram adiados com supremacia (veja bem, não resolvidos), animação geral, feridas cicatrizando, evento cheio, uma festa.
- Sua convidada de honra, sua heroína das publicações dona de uma das editoras que você mais admira no mundo te alerta: os livros vão chegar um dia antes da Plana, receba-os pra mim? Um dia antes? O ciclo mimético da editora que você admira e que também detém dos livros do outro convidado de honra que você admira igualmente, tudo, tudo, chega um dia antes? Confiemos no Fedex. Durante uma semana, diariamente, você liga no 0800 para ter certeza que eles chegariam. Chegaram? Não chegaram. Você passa a quinta e sexta da Feira Plana ao menos 5 horas no telefone acionando toda uma rede de pessoas que conhecem pessoas que tem familiares, conhecidos, admiradores na Receita Federal de Viracopos para que finalmente e obscuramente conseguisse liberar os livros que estavam retidos por suposta ameaça ilícita, para que fossem retirados sábado de manhã numa agência na Lapa.
- Uma passada de olhos final no orçamento. Tudo organizado, Renata, essa mulher sabe como mexer numa planilha. Renata. Fica aqui perto, por favor, não sai daqui. Em caixa: 68 mil. Em custos e faturas: 93 mil. Uma boa dívida. Tira daqui, tira dali, mais um ano sem cachê, conversa com os amigos, negocia, espreme, vira católica. Eu moro na Sta. Efigênia e seja pra onde eu vá, passo ao menos em frente a três igrejas. Nesse dia, entrei em uma delas. Dei uma rezadinha desajeitada e no mesmo momento já me veio a epifania, claro! Se tudo der errado, vou pedir dinheiro pro Charles, o Cosac. Porque ele não daria?
- Um dia para a Feira, uma folga no trabalho que durou longas horas montando, cortando, grampeando, dobrando, carregando, arrastando mas aquela tenda, não me canso de olhar. E enfim parou de chover.
Sentir tontura — Um dia de sol. Uns pequenos problemas pra resolver, nada demais. Uma equipe atenciosa, uma Plana bonita essa, uma cochilada cansada no sofá do primeiro andar. Dias felizes. Sucesso.
- Você acha que todos entenderão, afinal, a Plana é gratuita para todos! As oficinas são de graça — para os alunos, para a Plana elas custam, e bem caro, ainda assim, eles não aparecem. As palestras foram épicas — mas poucas pessoas se dispuseram a assistir. As mesas foram organizadas e pensadas da melhor maneira possível durante meses, faz, refaz, muda, ajeita, não coloca inimigos por perto, coloca os amigos juntos, atende desejos, olha e-mail por email os pedidos de localização e na medida do possível acha que todos ficarão felizes e tranquilos. Não ficarão. E se eles não estão felizes e tranquilos, você também não fica. Você nem dorme.
Melancolia — Esse é um capítulo sem final. A Plana termina mas continua. Por um lado, há a esperança da próxima, a nova identidade visual, roupa nova, refrescante, novas pessoas envolvidas, espaço novo, começar quase que do zero e de uma maneira totalmente diferente. Mais madura, coesa e escaldada. Por outro, há aquela lista sem soluções de problemas que ainda precisam ser resolvidos, uma ressaca sem fim.
- Contrato? Lealdade? Ah sim. Aí o pessoal não paga e você faz o que? Não pode fazer nada.
- Por enquanto a única fonte de renda real em conta bancária veio de vocês mesmos. 1) A festa. Você é leviana? Só pensa em bobagens como uma festa. Falta conteúdo. Curadoria. Respeito com a arte. Você ouve isso algumas vezes de forma dolorosa mas sabia que o propósito era nobre. 2) As doações durante a Plana. Acharam constrangedor pedirmos ajuda? Alguns (poucos) sim.
- Você é uma só. Tenta ser atenciosa na medida do possível com todos os convidados, todos os artistas, agradecer, dar retorno, elogiar o que merece, dá um orgulho imenso imenso imenso do que deu certo. Quanta gente legal! Claro, nunca é suficiente. Naquele momento que você atravessou pensando na fome que estava sentindo, enxergando uma fumaça negra na sua frente, você ignorou uma pessoa que não podia ser ignorada e isso virou uma briga estratégica e uma bloqueada de descontentamento nas redes sociais. E eu sou leviana.
- Ah sim, a planilha. Continua lá. As faturas pro futuro? Continuam caindo na conta bancária. Como a gente paga? Mãe, pai, reservas, Renata, Beto, Veridiana, empréstimo. E olha, você honra suas dívidas.
- Vai dar certo.
- Alguns disseram em forma de protesto: queremos transparência nesse orçamento, mostrem-nos essa planilha que pagaremos uma taxa na próxima Plana. Acho que agora ficou um pouco claro. Não somos desorganizados, somos apaixonados. E extremamente agradecidos por tudo o que passou, toda essa história.
- Fica um amor no coração enorme para: mãe, pai, Renata, Beto e Nath, Veridiana, Narowe, Guilherme e Tereza, Celeza, André Sturm, Giulia, Jana, Rachel, Carlos, Lena e Danilo, os expositores compreensivos e amáveis, o staff maravilhoso, o Felipe da Adidas, Vivi do Spotify, Guilherme do Hostel, Marcio do Hotel, Elaine, Aline e Florencia, Miklós e Anne, as meninas do Goethe, Furcolin e Jazzie, Bruno e Erre, Corina, Lucilene e Fernando da Ipsis, o Elevado, Chico e o I Hate Flash, Ana e Maite da Tijuana, Casa do Povo, Thea, o Roger, João Livra e todo mundo conhecido e desconhecido que ajudou um pouquinho pra isso tudo ser o que é. ❤